sábado, 16 de maio de 2015

O ÚLTIMO MINUTO


A nossa proposta de estudar (ou discutir) a arte da literatura quando vinculada à arte do futebol – propósito da minha gratificante participação neste blog – tem considerado vários aspectos técnicos destes dois campos de expressão humanos. Desde a relação mais direta entre a bola e a palavra por meio da perspectiva lúdica em que tanto o jogador de futebol como o escritor se irmanam na maneira de criar ou produzir beleza até as formas diferenciadas com que cada um deles maneja o material de que dispõe para tocar a sua arte – a instauração da realidade ficcional por parte de um e a peripécia fugidia inventada pelo contato do corpo com a bola por parte do outro – tudo, mas tudo mesmo, nesse campo, se estabelece como que realizado pelo poder radiante da invenção. Ou da inventividade, por assim dizer. É isso que vamos conferir, precisamente, nesse conto de futebol do escritor carioca, Sergio Sant’ anna, um verdadeiro craque na arte da invenção literária. Sant’ anna talvez seja o nosso “Neymar” da literatura brasileira contemporânea, tão amplo é o seu repertório de jogadas geniais com a palavra ficcional. Um daqueles craques para quem a palavra – assim como a bola, tornada tema literário – se entrega sem receio e sem reservas como a pedir que lhe chutem em direção à meta, ao gol, ou mesmo ao agrado de uma firula ou de um drible desconcertante dado na cara do adversário. A bola a qui é a palavra e o jogador aqui é o nosso Sérgio Sant’ anna que a domina como poucos, no campo da literatura. É só conferir o que eu estou dizendo lendo o texto abaixo, uma análise comentada, feita por mim,  de um dos seus contos futeblísticos mais geniais.
x.x.x
No último minuto
Sérgio Sant´anna
Este é um texto ficcional muito inventivo que revela o domínio das formas de narrar em ficção e que se debruça sobre aspectos relevantes do futebol quando entendido como metáfora lingüística da vida em alguns dos seus aspectos essenciais. O elemento do imponderável, presente tanto na vida quanto no jogo; a força das circunstâncias na definição de situações que parecem revelar certa autonomia dos objetos sobre os seres; a impotência destes diante de fatos consumados que informam a existência; a sensação de um tempo decisivo na configuração de estados sem volta na permanente mudança dos entes e das coisas são, enfim, alguns desses aspectos colocados em pauta por esta história.
Mais uma vez a linguagem televisiva é requisitada como elemento formal e o que sobressai nessa narrativa, por conseguinte, é a capacidade que a televisão tem de potencializar os efeitos dos fatos decorridos sobre a consciência e o psiquismo dos que deles participam. Seja diretamente, ampliando a repercussão desses efeitos no íntimo dos seus protagonistas; seja indiretamente, reapresentando para nós espectadores (e, agora, leitores) dimensões múltiplas desses fatos em função da sua recorrente e sistemática repetição através das imagens que os configuram – passam e repassam – nesses tempos de modernidade.
O caso aqui é o de um goleiro que conta a história de um lance imprevisto que o envolveu numa partida de final de campeonato e que, justamente por ser previsível o seu desenrolar, torna imprevisíveis e duros os impactos do seu desfecho no âmbito humano desse jogador de futebol. A história nada mais é do que o reviver, por parte do goleiro personagem e narrador, o drama em que tomou parte e que, dadas as circunstâncias do seu momento decisivo, tenta, por este recurso narrativo, compreendê-lo no que ele tem de mais incompreensível e de imponderável.
“Canal 5”.
Começa assim a narrativa.
“É uma rebatida de defesa deles. A bola vem alta e cai pro Breno, nosso médio-apoiador. Ele a mata no peito, põe no chão e aí perde o domínio da pelota. Mas ninguém vai se lembrar disso: que a primeira falha foi do Breno. A bola fica, então, para o meia-armador deles: o Luiz Henrique. É o momento do desespero, o último minuto”.
Esse trecho, explique-se – como, ademais, todos os que vão ser transcritos aqui – é a descrição, pelo narrador, do lance capital que protagonizou e a que ele assiste depois pelas câmeras de TV de um dos canais que o transmitiram. Note-se o recurso da descrição imagética da TV como a conferir objetividade plena a algo que, no interior do personagem-narrador, é vivido de forma intensamente subjetiva.
“(…) É um chute rasteiro, um centro chocho… E eu grito: ‘deixa’. Eu fechei o ângulo direitinho e caio na bola. Eu sinto a bola nos meus braços e no peito. E sei que a torcida vai gritar e aplaudir, desabafando o nervosismo, naquele último ataque do jogo. Eu tenho a bola segura com firmeza no meu peito e, de repente, sinto aquele vazio no corpo. Eu estou agarrando o ar. A bola escapando e penetrando bem de mansinho no gol. A bola não chega nem alcançar a rede; ela fica paradinha ali…, depois da linha fatal.”
Como a não acreditar no que acontecera, tudo é literalmente repassado pelo narrador outra vez, agora através de um utilíssimo recurso da televisão.
“EM CÂMARA LENTA”.
“(…) O ponta esquerda deles, o Canhotinho, está tão longe da bola que parece impossível que consiga alcançá-la. (…) O passe foi tão longo [refere-se ao passe que o adversário Luiz Henrique fizera a esmo: ‘É um desses lançamentos de araques na afobação de fim de jogo, só pra ver o que acontece’] que mesmo em vídeo-tape, já sabendo do jogo, a gente custa a se convencer que ele chegará a tempo de tocar na bola. Então me vem agora, essa sensação absurda de que ainda pode acontecer tudo diferente, e corrigir minha falha”
Para conseguir um efeito cumulativo do seu drama – efeito que vai se ampliando à medida que a história avança –, o narrador conclui assim, a descrição do que via pelo canal 5: “E agarrei a bola, ela está segura nos meus braços e no meu peito. Nós vamos ser campeões. Eles param o tape só para mostrar isso: como eu estou tranqüilo com a bola. Neste instante, nós ainda somos campeões do Brasil”.
Os trechos seguintes da narrativa fazem a ligação entre a sua dimensão puramente intrínseca ao futebol e a repercussão humana, já, do ocorrido. Daí ser funcionalmente interessante, o narrador mudar a sua perspectiva de visão através da mudança do canal de TV.
“CANAL 3”.
“São vinte e dois minutos do primeiro tempo. Minha mulher senta ao meu lado e diz pra eu desligar a televisão e me esquecer daquilo tudo. ‘Amanhã é outro dia’, Ela diz. Amanhã é outro dia, eu penso. Eu vou sair na rua e ver o meu retrato em todos os jornais dependurados nas bancas: eu me preparando para defender aquele chute; eu com a bola nas mãos; eu com a bola perdida e já entrando no gol. Eu, o culpado da derrota. Eu, frangueiro, se não falarem pior: que eu estava vendido.”
“Quando vai começar o segundo tempo, minha mulher aperta a minha mão e fica me olhando assim meio de lado. Eu digo para ela ir dormir, não quero a piedade de ninguém”.
“O tempo passando, minuto por minuto. Eu ouço aquele barulho todo da torcida e é incrível como a alegria pode se transformar em tristeza tão de repente. Eu penso, também, como a vida se decide às vezes num centímetro de espaço ou numa fração de segundos. E me volta aquela loucura, a sensação de poder modificar um destino já cumprido, fazer tudo diferente. Ir naquela bola de outro jeito, espalmá-la para corner, mesmo sem necessidade”.
Novamente o recurso da câmara lenta e do vídeo-tape para intensificar ainda mais a sensação do drama vivido e, diante do incompreensível, tentar compreendê-lo ao divisá-lo sob os mais diferentes ângulos:
“Tape parado: Eu estou com a bola segura e escondida nos braços e sob o corpo”.
“Tape rodando lentamente: a gente percebe, a princípio, apenas que a bola se deformou: ela parece um ovo, com a ponta aparecendo entre os meus braços. É como se a bola inchasse e por isso se despregando do meu corpo e escorrendo mansamente pela grama. Até parar, caprichosamente, um pouco depois da linha fatal”
“POR DETRÁS DO GOL: No meio daquele inferno todo, eu me viro para trás e estou de cabeça baixa diante dos fotógrafos e cinegrafistas. Eu tenho vontade que o mundo desapareça ao meu redor. O mundo não desaparece. Eu cubro o rosto com as mãos e é assim que aquela câmera me focaliza. Eu cubro o rosto com as mãos aqui sentado diante do televisor, que me mostra cobrindo o rosto com as mãos lá dentro do gramado”.
Aqui fica concluída a mixagem dos três planos que envolvem a ocorrência vivida pelo personagem-narrador: o do jogo em si, quando o goleiro constata desolado o gol improvável que tomou; o do homem em jogo, quando ele sente o impacto do fato sobre os seus ombros e reage impotente, literalmente indefeso, e do jogo espetáculo, quando sua dor subjetiva é mostrada objetivamente pelas impiedosas objetivas das câmeras de TV.
Daí que o narrador, para ressaltar todos esses elementos envolvidos num jogo de futebol moderno, e para compor uma mimese adequada a sua transfiguração pela palavra literária, tenha inteligentemente escolhido o suporte da linguagem da televisão e com ela fixado a maneira pela qual, através da lógica do espetáculo, um momento que é de experiência individual, torna-se de vivência coletiva.
E para expandir ainda mais o âmbito de repercussão da sua falha de goleiro, e com isso expor mais precisamente a dimensão da sua dor interior, o narrador encerra a sua história a partir de mais um ângulo de observação em que a imagem cede lugar ao som, como a evidenciar, para o caso narrado, a eficácia da natureza tátil do veículo televisão, conforme preconizava deste meio de comunicação, o pensador Marshal McLuhan.*
O recurso de tirar partido do efeito cumulativo é o mesmo com as repetições da cena capital levadas ao paroxismo.
“CANAL 8 – Eles abriram os microfones e a gente escuta nitidamente os gritos da nossa torcida: ‘É campeão, é campeão’. Um grito que ecoará durante a noite inteira na cidade. Só que a torcida adversária que irá comemorar. ‘É campeão, é campeão’, o grito apenas mudando de um lado para o outro das arquibancadas”.
(…)
“EM CÂMERA LENTA – (…) Eles voltam à câmara uma porção de vezes. Aquela bola que sai de dentro do gol e volta aos meus braços e daí ao Canhotinho e dele de volta ao Luiz Henrique. Aquela bola que sai de novo dos pés de Luiz Henrique e rola para a ponta esquerda e até a linha de fundo, onde o Canhotinho bate nela todo torto e de esquerda e daí aos meus braços e depois para dentro do gol”.
“Eles repassam uma porção de vezes a jogada. (…) Como se fosse repetir-se para sempre, igual a um pesadelo”.
De temática simples, um evento relativamente comum em jogos de futebol (o lance em que o goleiro é traído pela bola, deixando passar um gol que todos – inclusive ele – asseguravam defendido: o chamado “gol frango”), o grande lance desse conto de Sérgio Sant´anna é a forma de narrá-lo. Um caso típico em que a forma ilumina o conteúdo. Conteúdo esse, o leitor pôde notar, tecido aqui por uma fabulação que é ela mesma rica em significados extras, e que por conseqüência disso salta da categoria de um mero evento de jogo para a dimensão de um daqueles pequenos dramas humanos que, mais do que as câmaras de TV, só as lentes da boa literatura sabem captar.
QUEM É O AUTOR:
Sérgio Sant’Anna nasceu no Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1941. É contista, romancista e poeta. Sua obra é notória pelo caráter experimental, abordando temas urbanos de várias formas diferentes, algumas bastante transgressivas e inovadoras. Embora já tenha publicado poesia, peças de teatro, novelas e romances, Sant’anna se considera primeiramente um contista. Seu romance mais célebre é As Confissões de Ralfo, publicado em 1975. O livro é a história de um escritor que decide escrever uma “autobiografia imaginária”, narrando vários fatos extraordinários numa sucessão inverossímil. Além de O sobrevivente (1969), publicou Notas de Manfredo Rangel, repórter – A respeito de Kramer (1973), Simulacros (1977), O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982), Amazona (1986), Senhorita Simpson (1989), Breve história do espírito (1991), O monstro (1994) e Contos e novelas reunidos (1997). Ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti e também, por duas vezes, foi agraciado com o prêmio Status de Literatura. A narrativa, acima, No último minuto foi publicada, no livro, Contos brasileiros de futebol, editado em 2005, por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília, e 22 contistas em campo, reunião de textos organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006.


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